Steve mastigava a própria língua e se machucava sem perceber
Steven Pete e seu irmão nasceram com um raro mal genético chamado analgesia congênita.
Os dois americanos (do Estado de Washington) cresceram com o sentido do toque, mas sem jamais terem sentido dor , como Steve explica no depoimento a seguir:
"A primeira vez que ficou claro para os meus pais que algo estava errado foi quando eu tinha apenas cinco meses de vida.
Eu comecei a mastigar minha língua à medida que
meus dentes nasciam. Meus pais me levaram a um pediatra, onde passei por
uma bateria de exames.
Primeiro, acenderam um isqueiro na sola do meu
pé e esperaram que se formasse uma bolha na pele. Logo que perceberam
que eu não reagia, começaram a espetar agulhas nas minhas costas. Como
eu novamente não respondi, chegaram à conclusão que eu sofria de
analgesia congênita.
A essa altura, eu já havia mastigado cerca de um quarto da minha língua.
Eu e meu irmão crescemos em uma fazenda. Meus
pais tentaram ser protetores sem nos sufocar. Mas, quando você vive no
campo, e especialmente se você é um menino, você quer ficar fora de
casa, explorar e aprontar um pouco.
Por isso, no início da minha infância, eu faltei muito à escola por causa de lesões e doenças.
Steve Pete
- Aos 31 anos, ele trabalha em um programa de apoio a nativo-americanos dependentes de drogas no Estado de Washington
- Casado e pai de três filhos
- Coproduz o site The facts of painless people (Fatos sobre pessoas sem dor, em tradução livre): www.thefactsofpainlesspeople.com
Certa vez, acho que num rinque de patinação,
quebrei a minha perna, mas não lembro dos detalhes. As pessoas apontavam
para mim porque as minhas calças estavam cobertas de sangue da área em
que o osso saiu. Depois disso, fui proibido de patinar até que fosse bem
mais velho.
Com cinco ou seis anos, funcionários do serviço
de proteção ao menor me levaram da minha casa, porque alguém denunciou
meus pais por agressão. Fiquei sob os cuidados do Estado por cerca de
dois meses.
E, quando voltei a quebrar a perna, eles
finalmente perceberam que meus pais e meu pediatra estavam falando a
verdade sobre a minha condição de saúde.
'Vai sentir dor quando eu acabar com você'
Na escola, muitas crianças me perguntavam sobre o
que eu tinha. "Por que você está usando gesso?", eles questionavam. A
maior parte do tempo eu estava engessado, até completar 11 ou 12 anos.
E frequentemente me envolvia em brigas. Sempre
que um menino novo entrava na escola, as crianças tentavam convencê-lo a
brigar comigo, como uma espécie de introdução à escola. E me diziam:
"Se você não sente dor, vai sentir quando eu acabar com você".
Hoje, não me considero uma pessoa
particularmente imprudente. Acho até que sou mais atento do que a
maioria, porque sei que, se eu me machucar, não saberei a gravidade do
machucado.
Lesões internas são as que mais me amedrontam,
especialmente apendicite. Em geral, se tenho qualquer problema estomacal
ou febre, vou direto para o hospital só por precaução.
Irmão de Steve sofreu com severos problemas de coluna
A última vez que quebrei um osso, a minha mulher
percebeu antes que eu. Meu pé estava inchado, com coloração preta e
azul. Fui ao médico, passei pelo raio-x e descobri que tinha quebrado
dois dedos e que precisaria usar gesso.
Eu precisava trabalhar no dia seguinte. E, se
estivesse engessado, teria que ficar afastado do trabalho por um bom
tempo. Então disse aos médicos que eu podia me cuidar. Voltei para casa,
peguei fita isolante, prendi meus dedos, vesti uma bota e fui
trabalhar.
Uma das coisas que terei que enfrentar em breve é
o fato de que não terei mais a minha perna esquerda. Já passei por
tantas cirurgias no meu joelho esquerdo que chegou num ponto em que os
médicos disseram que só me resta esperar que a perna pare de funcionar.
Quando isso acontecer, ela terá de ser amputada.
Eu tento não pensar a respeito. Tento não deixar que isso me afete.
Mas não posso evitar o pensamento de que a analgesia congênita foi uma das razões pelas quais meu irmão decidiu se suicidar.
Suas costas estavam ficando cada vez pior. Ele
estava quase se formando em uma universidade local, e os médicos
disseram que, em um ano ou um ano e meio, ele ficaria preso a uma
cadeira de rodas.
Ele era uma pessoa que gostava do ar livre -
gostava de sair, de pescar e caçar. Mas quando ele tentou receber algum
tipo de ajuda financeira por sua debilidade quando ela chegasse, a
resposta do juiz foi: "Se você não sente dor, não tem motivo para
receber nenhuma assistência".
O negócio é que, no caso do nosso problema,
muitas pessoas que nos veem deduzem que somos saudáveis. Mas elas não
têm ideia de que o meu corpo pode parar de funcionar a qualquer momento,
que ele está todo machucado.
Eu tenho artrite severa nas minhas juntas. Não é
dolorido - eu não sinto nenhuma dor -, é apenas um incômodo. Mas às
vezes é difícil andar.
A sensação é de pressão, como se minhas juntas
estivessem latejando. Alguns dias isso me deixa mau humorado. Isso
limita a minha mobilidade.
Quanto aos médicos, acho que eles entendem o meu
problema. Eles só não entendem o componente humano disso - a psicologia
do que pode acontecer quando você cresce sem conseguir experimentar a
dor."
Analgesia congênita
Portadores não sentem dor, e excessos de calor ou frio não são sentidos como perigosos
Distúrbio genético que afeta menos de uma pessoa em 1 milhão
Enquanto bebês, portadores podem morder sua lingua e seus dedos, ou se queimar sem perceber
Alguns pais colocam óculos protetores, capacetes e meias nas mãos das crianças portadoras, para protegê-las
Mal pode causar artrite e problemas de crescimento
Causa é desconhecida, e o mal não tem tratamento ou cura
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/07/120717_americano_semdor_pai.shtml