A possibilidade de interferir no curso de algumas enfermidades
genéticas trouxe qualidade de vida para portadores e suas famílias
Leoleli Camargo, de Natal | 28/02/2011
11:13
Até bem pouco atrás as doenças genéticas raras vinham sendo
enxergadas da mesma forma que eram estudadas pela ciência: de maneira
absolutamente isolada. Não é de se admirar. Algumas são tão incomuns que
seus portadores somam poucas dezenas e muitas delas são, além de
incuráveis, impossíveis de tratar.
Esse caráter infrequente e complexo contribuiu para torná-las o que
os médicos chamam de “doenças órfãs”, ou seja, que recebem menos
atenção, esforços e investimentos por parte das autoridades de saúde e
da indústria farmacêutica.
Na última década, entretanto, os esforços de concentrados centros de
pesquisa entidades de portadores destas doenças resultaram em recursos
capazes de identificar mais rapidamente e até tratar algumas delas –
como é o caso das doenças de Gaucher e de Fabry, e de alguns tipos de
mucopolissacaridoses. A mesma mobilização que suscitou diagnósticos e
tratamentos mais eficazes para doenças incapacitantes e letais, culminou
no Dia Mundial das Doenças Raras, comemorado hoje (28).
“Essas doenças são vistas de forma individual, mas se somarmos todas,
a frequência delas fica em torno de 1 para 5 mil, o que significa hoje
aproximadamente 40 mil brasileiros” afirma o geneticista Roberto
Giugliani, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Giugliani participou
do 4º Congresso Latinoamericano de Doenças Lisossômicas (Colatel),
encerrado domingo (27) em Natal (RN) e onde foram
discutidos
o diagnóstico e o tratamento de doenças genéticas raras.
O conhecimento acumulado com o estudo da genética e, na última
década, do genoma humano, mostrou que a origem de todas essas doenças
está em um ou mais dos 20 mil genes que carregamos no corpo. Cada ser
humano, explica Giugliani, carrega entre 3 e 5 genes defeituosos. Volta e
meia, um homem e uma mulher portadores dos mesmos genes com defeito se
encontram, se relacionam e tem filhos. Pode ser o início de alguma
doença grave, incapacitante e por vezes letal.
“Muitas dessas doenças se manifestam por meio de sintomas facilmente
confundidos com problemas mais simples. Por conta disso, os portadores
peregrinam por dezenas de especialistas até obter um diagnóstico
preciso” explica Gregory Pastores, geneticista e professor da
Universidade de Nova York, nos Estados Unidos.
Um bom exemplo disso é a Doença de Fabry. Causada pela ausência de
uma enzima envolvida no metabolismo das gorduras no organismo, ela gera
uma série de sintomas que, se observados de forma isolada, podem ser
confundidos com indícios de outras doenças de tratamento simples e fácil
resolução. Alguns portadores levam décadas para descobrir o que tem.
“Pessoas com essa doença sentem, desde pequenas, dor e formigamento
nas mãos e nos pés. Os médicos geralmente diagnosticam isso como dores
normais do crescimento e jamais pensam em Fabry” diz a pediatra e
geneticista inglesa Uma Ramaswami, do Hospital da Universidade de
Cambridge, na Inglaterra.
Além dos testes já existentes – muitos feitos por meio da análise de
sangue e urina – estão em estudo outras opções para identificar mais
precocemente algumas doenças genéticas. Marcadores biológicos, como
determinadas enzimas e proteínas presentes no sangue, são uma esperança.
“Em algumas doenças já temos marcadores biológicos bem identificados,
mas infelizmente ainda não conseguimos dados suficientes para
determinar quais são relevantes no diagnóstico precoce e quais não são”
diz Johannes Aerts, bioquímico e professor da Universidade de Amstertan,
na Holanda.
A rapidez no diagnóstico de uma doença genética tem um impacto
importante na qualidade de vida de quem a tem. Se o problema pode ser
tratado, iniciar o tratamento antes mesmo de aparecerem os sintomas pode
mudar a vida do paciente. Caso não seja possível tratá-la,
identificá-la precocemente ajuda a antecipar sequelas.
Para a família do portador, o impacto do diagnóstico também é
benéfico. Primeiro porque põe fim a uma angústia de meses, até anos. Em
segundo lugar, permite aos geneticistas informar e orientar os pais
sobre o curso da doença e sobre como evitar o nascimento de outro filho
com o mesmo problema. Qualquer interferência, afirmam os especialistas, é
melhor do que não fazer nada.
Conheça algumas das doenças genéticas raras mais estudadas.
Doença de Fabry
É causada pela deficiência em uma enzima envolvida no metabolismo das
gorduras no organismo, o que gera acúmulo de gordura em vasos sanguíneos
e órgãos. Os sintomas dessa enfermidade são variados e se confundem com
os de outras doenças, dificultando o diagnóstico. Portadores de Fabry
tem queimação e formigamento nas mãos e nos pés, intolerância ao calor,
pequenas lesões avermelhadas na pele, episódios de diarreia alternados
com constipação e vista embaçada por conta de catarata. Pessoas com
Doença de Fabry frequentemente sobrevivem à infância,mas têm um risco
altíssimo de Acidente Vascular Cerebral (AVC), falência renal, infarto
outras doenças cardíacas.
Doença de Gaucher
Também é causada pela inexistência ou pela produção deficiente de uma
enzima envolvida no mecanismo de eliminação de uma substância chamada
glicocerebrosídeo. Sem a eliminação adequada, essa substância se acumula
em diversas partes do corpo, como baço, fígado, ossos e sistema nervoso
central, gerando sequelas que vão desde problemas de coagulação
sanguínea até retardo mental. A Doença de Gaucher é classificada em três
subtipos, de acordo com a gravidade das sequelas neurológicas.
Mucopolissacaridoses
Nesse grupo de doenças, a enzima que não é produzida pelo organismo o
torna incapaz de processar os glicosaminoglicanos (GAGs), açúcares
complexos usados pelo corpo para estruturar diversos tecidos, como
ossos, cartilagens, pele e vias aéreas. Quando os GAGs se acumulam no
corpo, podem causar sintomas como macrocefalia (crânio maior que o
normal), deficiência mental, alterações da face, dificuldades visuais e
auditivas, rigidez das articulações, deformidades ósseas, insuficiência
das válvulas cardíacas e aumento do fígado e do baço, entre outros.
Existem 11 tipos de mucopolissacaridose, entre tipos e subtipos. Jáa há
tratamento para os tipos 1, 2 e 6 e estão em estudo terapias para os
tipos 4A e 3A.
Doença de Pompe
É causada pela atividade deficitária de uma enzima chamada
alfa-glicosidase-ácida, responsável pela degradação de parte do
glicogênio da célula. Essa deficiência faz com que o glicogênio se
acumule dentro de minúsculas estruturas na célula provocando dano nos
tecidos do coração, dos pulmões e do ossos. A doença tem sintomas
variáveis, mas comumente gera fraqueza muscular, cardíaca e
respiratória, levando à morte entre o começo da infância e a metade da
vida adulta. Já existe tratamento para a doença, feito por meio da
reposição da enzima deficitária.