Lidar com as limitações do outro exige, em qualquer tipo de
relacionamento, empatia, respeito e paciência. Quando essas limitações
envolvem a capacidade intelectual de alguém da família, quase sempre a
relação ganha uma dinâmica diferente da que se esperava ou tinha até
então. O ato de cuidar toma proporções diferentes, ganha singularidades
e, às vezes, vira uma tarefa para sempre.
E pode acontecer em qualquer fase da vida. Para Leonilda Freitas,
aconteceu quando ela se tornou mãe pela terceira vez. “Fiquei sabendo um
mês depois que ele nasceu”, diz Leonilda Freitas, mãe de Murilo, 10
anos, que tem síndrome de Down. Ao levá-lo para a primeira visita ao
posto de saúde, perguntou se estava tudo bem. A resposta da médica foi
“sim, mas ele tem síndrome de Down”.
Mãe de Cristal, hoje com 17 anos, e de Eduardo, com 13, ela voltou
para casa “estremecida”. “Meu luto não durou muito. Logo comecei a
buscar ajuda”, afirma. Passou a frequentar a Apae pelo programa Momento
da Notícia, do qual hoje é voluntária. “É um acolhimento para as pessoas
que chegam cheias de medo. A gente fala da necessidade de não
superproteger, explica que o filho tem um déficit, sim, mas também tem
muitos potenciais que cabe à família achar e ajudar a desenvolver”, diz.
Foto: Alexandre Carvalho - Fotoarena
Murilo faz careta e posa com a família. "Superproteção é a pior discriminação", diz a mãe
A dedicação de Leonilda ao filho foi intensa, sobretudo nos primeiros
anos – e nisso todas as mães podem se enxergar. “Ele demorou um pouco
mais para andar, a fala é mais comprometida, são necessidades
diferenciadas. Ele fez fisioterapia, fono, hidroterapia”, diz Leonilda.
Na divisão de tarefas com o marido, ela optou por trabalhar de casa para
estar mais perto da rotina dos filhos – que, como em toda família, tem
brincadeiras coletivas, broncas, brigas e cooperação. Murilo estuda numa
escola comum. Ainda assim, o dia-a-dia tem suas particularidades, como o
batom de cor forte que a mãe se acostumou a usar para que o filho
perceba melhor os movimentos labiais na hora da conversa.
Superproteger é discriminar
Foto: Alexandre Carvalho/ Fotoarena
Diagnóstico de Murilo só veio com um mês de vida
“Num primeiro momento, você tem medo de ter um filho com
deficiência intelectual, porque sabe que sempre vai ter que ter alguém
por perto”, desabafa. “Mas superproteção é a pior discriminação que uma
mãe pode fazer, porque gera eternos bebês”, afirma.
Para ela, a família não pode viver em função do filho. “Tem mulher que
vira mãe e deixa de ser mulher, para de encontrar as amigas. Eu procurei
não fazer isso. Sou vaidosa, e cheguei a ouvir pessoas comentando sobre
meu cabelo como se eu não estivesse cuidando do meu filho o
suficiente”, afirma. “Lógico que eu tive que me dedicar mais, mas tive
que cuidar também de mim e dos outros filhos.”
É esse desafio que enfrenta agora Tatiana Gonçalves de Oliveira
Freitas, 30 anos. Ela é mãe de Samuel, de 2 anos e 8 meses, e de Amanda,
de 5 anos. “Ele tem atraso global do desenvolvimento”, diz Tatiana.
“Samuel tem tamanho e peso de um ano, é todo pequenininho”, conta. O
menino divide as atenções extras com a irmã, que é diabética. Descobrir
as duas condições exigiu muito da mãe. “Ano passado foquei nela. Acabei
adoecendo com esse monte de problemas de uma vez só, e agora fui me
cuidar. É difícil, me anulei completamente.”, diz Tatiana.
Ela acaba de fazer um curso de manicure para poder trabalhar de
casa – opção muito comum para quem tem filhos com necessidades especiais
– e agora participa de grupos de pais. “Fui me oprimindo, deprimi,
comecei a engordar muitor”, afirma. Com os primeiros encontros, já tem
vontade de mudar o rumo. “Saí da última reunião decidida a colocá-lo na
creche. Morro de medo de não estar presente quando eles precisarem. Meu
marido diz que sou superprotetora.” Por conta das necessidades de Samuel
– com quase 3 anos, ele ainda come papinhas batidas no liquidificador
para facilitar a deglutição – Tatiana mima o filho, diz que tem
dificuldade de dizer não, e sofre para conter as próprias expectativas.
“Vou ao pediatra e fico muito frustrada, porque ele não acompanha o que é
esperado para a idade dele. Não me permito chorar. Mas é lógico que eu
queria que ele engordasse”, desabafa.
“É uma angústia enorme. Se os pais percebem uma diferença que não é
mencionada pela equipe que atende o filho deles, sofrem. Quando antes
esse diagnóstico sai, melhor”, diz Marília Costa, gerente técnica da
Apae de São Paulo. A partir do momento que a hipótese de deficiência
intelectual é cogitada, o ideal é já trabalhar para começar a
desenvolver as potencialidades, oferecer apoio e trabalhar as
expectativas. “Sem esse trabalho, os pais ficam buscando soluções
alternativas. Isso gera angústia e autoestima baixa para a criança, que
se sente pouco capaz de corresponder àquelas expectativas”, diz Marília.
“Quanto mais a família, a escola e a sociedade ofertam os apoios e
suportes necessários, mais eles são independentes”, afirma.
Apoio insubstituível
Foto: iG
Nem sempre é possível oferecer condições para que o portador de
necessidades especiais ganhe independência – a família sempre vai
precisar estar presente e próxima. É o caso de Adriane, filha caçula de
Walkiria Luiza de Oliveira Quiroga, 63 anos. Hoje com 32 anos, Adriane
tem Síndrome de West, mal que afeta o desenvolvimento neuropsicomotor.
“Tive a mesma reação de todo mundo que tem uma filha especial: medo,
principalmente de não ter tempo suficiente para ela.” Até hoje, Walkiria
dispensou a ajuda de cuidadores, apesar de a filha ter um nível alto de
dependência. “Gostaríamos de viajar e sair mais, mas tudo bem. Tem suas
compensações”, diz. A família se organiza para ter sempre alguém –
geralmente o pai, a mãe ou uma tia de Adriane – em casa para os outros
poderem ir a uma festa ou evento. “A Adriane é uma mulher, está com 32
anos, tem que dar banho, estar perto sempre”, diz.
Em casa, a cooperação familiar foi o que fez com que Walkiria não se
sentisse sobrecarregada. “Me desdobro um pouco para dar atenção aos meus
netos, ir às festas na escola. É uma coisa que tem que dançar miudinho
para resolver. Mas até agora deu certo.”
Preconceito
Segundo especialistas, casos de doenças e transtornos que afetam de
forma tão aparente a autonomia e independência da pessoa, como
transtornos mentais, podem ser fonte de preconceito e dificuldades
maiores. “Transtorno mental envolve segregações, exclusão e outras
representações diferentes de uma família que tem um deficiente mental”,
diz Maria Alice Ornellas Pereira, doutora pela Faculdade de Medicina da
Universidade Estadual Paulista de Botucatu.
Se até a década de 1980 a regra para portadores de transtornos
mentais era a internação, hoje é manter a maior integração possível com a
família e a sociedade, o que implica em educar famílias para aprender a
lidar com as particularidades dos transtornos. “Acredito que houve,
sim, mudança e avanços desde a reforma psiquiátrica”, afirma Maria
Alice. “Diante disso, a família precisa receber apoio, porque fica
desamparada. Informação é um aspecto imprescindível”, diz. “São tantos
sentimentos. A gente vê que a família tem medo, insegurança, muitas
vezes não sabe como lidar. E não pode pautar o tratamento do paciente só
em medicação.”
Um paciente com esquizofrenia, por exemplo, pode melhorar ou piorar
conforme a expressão das emoções num determinado ambiente familiar.
“Uma família que vive entre gritos e rechaços repercute nessa pessoa”,
afirma Maria Alice.
A vertente da antipsiquiatria é ainda mais radical: a família não apenas
sofre com um portador de transtorno mental, como também participa da
causa. “Se a família está preparada para o transtorno mental? Ela faz
parte dele. Ela é causa primária dele. As pessoas não têm um
neutrotransmissor que produz a loucura, ele vem de um campo relacional”,
diz Julia Catunda Garcia de Abreu, psiquiatra do CAPS infantil da Lapa e
da secretaria de saúde do Embu das Artes. “E sem a família, você só
consegue internar, não consegue fazer tratamento”, afirma. Engajar as
pessoas é um desafio. “Existe uma recusa muito grande da família sobre o
transtorno, e, quanto maior o surto, maior o não reconhecimento da
participação dela.”
Alzheimer
A situação de quem recebe em casa uma criança que já nasce com
necessidades especiais, ou de quem tem um parente que passa a apresentar
um transtorno durante a vida é totalmente diferente daquela da família
que lida com uma doença degenerativa. “Minha mãe tem Alzheimer há cerca
de dez anos. Você não sabe exatamente quando ele surge”, conta Regina
Ribas Costa Sardenberg, 57 anos, bibliotecária aposentada. Ela morava
numa casa na mesma rua em que a mãe, o pai e a irmã, que tinha
deficiência intelectual. “Com a morte do meu pai, pouco depois do
diagnóstico, ela piorou. Contratei duas cuidadoras para minha mãe e
minha irmã”, diz Regina.
Cerca de quatro anos
depois, Regina perdeu a irmã, e passou a lidar sozinha com a progressão
do Alzeihmer da mãe. Há cerca de 5 anos, Regina buscou uma associação de
familiares para aprender a lidar com a doença. “Os cuidadores não
chegam sabendo lidar, eu repasso tudo que aprendo”, conta. “O Alzheimer
acaba mexendo com toda a família. Minha mãe não mora na minha casa
porque eu quis ao máximo preservar minha vida familiar, apesar de ser
custoso”, afirma. Para manter a mãe na própria casa, dentro de uma
rotina que já está estabelecida, ela conta com duas cuidadoras,
empregada doméstica para cozinhar, lavar e limpar e fisioterapeuta duas
vezes por semana, para diminuir a perda de movimentos. “A proximidade
ajuda a manter assim. Qualquer coisa, eu atravesso a rua e estou lá”,
diz Regina, que convive com a mãe diariamente, gerenciando as crises e
levando-a ao médico. “Uma coisa importante que aprendi é que a gente tem
que tentar entrar no mundo do doente”, conta.
Quando possível, esta é uma das melhores soluções para o doente e
para a família, em todos os casos. “A casa toda do jeito dela, adaptada
para um idoso”, conta. “Mesmo para quem está preparado, é um baque
grande. A família adoece junto”, conta Maria Aparecida Albuquerque
Guimarães, presidente da Associação dos Parentes e Amigos das Pessoas
com Alzheimer. “Muda a rotina de uma família, quebra relações
familiares. Geralmente um familiar é eleito para ser o cuidador sem ter
se candidatado e os outros tendem a se acomodar. A carga pesada não pode
ficar em cima de uma pessoa só, isso pode encurtar a vida do cuidador, é
enlouquecedor”, afirma Maria Aparecida.